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Relatos Selvagens

Relatos Selvagens é daqueles filmes que te faz pensar dias após tê-lo visto. Uma obra prima (mais uma) do cinema argentino que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2015, cheia de significado e reflexões.

 

Com uma maestria impressionante, a obra transita entre os gêneros de comédia, drama e  thriller, méritos para o diretor diretor Damián Szifron que tem nesse filme o trabalho mais relevante de sua carreira. Nome para ficar de olho nos próximos anos.

O enredo conta com seis histórias completamente diferentes e originais, porém que se assemelham tematicamente, já que retratam situações cotidianas elevadas a um stress altíssimo e resultando em reações extremamente violentas. Pessoas comuns que ao serem submetidas a situações extremas, abandonam às convenções sociais e agem por simples e puro instinto. E acredite, é melhor não saber mais do que isso para assistir ao filme, assim a experiência será bem mais prazerosa e surpreendente.

O filme conta com um humor ácido, usado em situações que inicialmente são comuns (como uma briga no trânsito ou a descoberta de uma traição), mas elevadas a um completo absurdo quando os personagens agem segundo seu instinto. São atitudes que qualquer um de nós já pensou em fazer em momentos de ira, e Relatos Selvagens mostra exatamente o que aconteceria se todos seguissem esse instinto. Há quem diga que o filme é uma mistura de Tarantino com Almodóvar (que por sinal, é produtor do filme).

O elenco é perfeitamente escalado, com destaque para Érica Rivas, que interpreta uma noiva com um desejo insaciável de vingança, Rita Cortese, que dá vida a uma impulsiva cozinheira que se depara com a oportunidade de fazer justiça com as próprias mãos e (sempre ele) Ricardo Darín, como um engenheiro elevado a um stress máximo que vê sua vida desmoronar por uma (segundo ele) injustiça. A trilha sonora original composta por Gustavo Santaolalla, já duas vezes premiado com o Oscar por seu trabalho em O Segredo de Brokeback Mountain e Babel, aliada a diversificadas músicas da cultura pop, cria ao mesmo tempo uma atmosfera verossímil em contraste com situações propositalmente absurdas.

Uma obra indicada para todos os públicos, para aquele que busca um filme para rir e se divertir ou para aquele que busca um filme com significado filosófico e crítica social (leia a resenha após esta crítica quando ver o filme). Comédia regada a bastante humor negro, suspense, romance, drama e ação, todos os estilos perfeitamente conectados e na medida certa.

O melhor e mais relevante filme dos últimos anos.

NOTA: 10.

A partir daqui, o texto estará repleto de spoilers. Nesta resenha, iremos analisar as seis histórias de Relatos Selvagens separadamente e é recomendável apenas para quem já assistiu ao filme.

[TEXTO COM SPOILERS]

Crítica:
Resenha:
  • Pasternak

O prólogo de Relatos Selvagens já prepara e ambienta o público para o tipo de filme que está por vir. Os passageiros de um avião descobrem que todos têm algo em comum. São desafetos de um ex-músico frustrado e agora piloto do avião em que eles estão. Pasternak, o piloto, está disposto a uma vingança épica contra aqueles que o magoaram, traíram ou rejeitaram em algum momento. Ele arremessa o avião contra uma casa de dois idosos, que só nos créditos descobrimos que são os pais de Pasternak. A atitude do piloto pode ser problematizada como uma infantilidade e uma falta de humildade (sua professora do primário estava no avião!), onde faltou a capacidade de olhar para os próprios defeitos e a aceitar críticas. Talvez o único motivo plausível para essa fúria seria a traição de sua ex com seu amigo. Um início impactante e divertidíssimo.

Em seguida, são mostrados os créditos que são bem simbólicos. Imagens de animais, como tubarões e crocodilos, nos preparam para um filme em que as pessoas irão agir com extrema fúria e dominados pelos seus instintos, assim como os predadores das imagens.

  • Las Ratas

O episódio seguinte mostra a rotina de trabalho de uma garçonete em uma noite chuvosa, interrompida quando o único cliente da lanchonete chega. Ela percebe que é o homem que causou a morte de seu pai e assediou sua mãe. Entra aí o dilema da personagem entre o desejo de vingança e a razão, ainda mais depois que o filho do “vilão” aparece posteriormente. A dona do restaurante, uma idosa interpretada excelentemente por Rita Cortese, personifica os instintos mais primários e resolve fazer justiça com as próprias mãos, colocando veneno de rato na comida do cliente. A garçonete tenta recolher, sem sucesso, a comida da mesa quando o filho chega, enquanto a idosa argumenta que o filho merece morrer também, pois o mal é hereditário e ele se tornaria igual ao pai. 
A sacada hilária do “veneno vencido faz menos ou mais efeito” é digna de nota e dá leveza a história, com uma trágica comicidade que está presente em toda a obra. Por sinal, o veneno velho se torna uma analogia a própria garçonete, onde esperou a vida toda por uma vingança e na hora H surge a pergunta: esse veneno já se tornou inofensivo, ou seja, ela se manteria ética, ou se tornou bem mais potente, a ponto dela se tornar uma assassina?

  • El más fuerte

Uma situação que ocorre todos os dias no mundo todo. Uma briga de trânsito, onde o orgulho de dois machos alfa falam mais alto que a razão. Um por não ter o carro do outro, e o outro por sofrer uma ultrapassagem do carro mais modesto do um. 
Esse episódio é um dos melhores do filme, executado tecnicamente com maestria e dosando humor, tensão e ação perfeitamente. A sacada final também é ótima, quando o investigador questiona se aquilo seria um crime passional.
A batalha entre os dois homens até a morte remete à briga por território entre dois animais selvagens, um não pode dividir o mesmo espaço que outro, um não pode coexistir com o outro. A ignorância humana aqui elevada a níveis de selvageria, em uma situação bastante comum em nosso cotidiano.

  • Bombita

A trama interpretada pelo sempre excelente Ricardo Darín é sensacional. O engenheiro Simon é um sujeito bastante correto que busca o ressarcimento de uma multa injusta que levou. Ele bate de frente com a extrema burocracia do departamento de trânsito, enquanto, paralelamente a isso, sua vida pessoal desmorona, com o divórcio em seu casamento. Em um ato de stress absoluto, ele quebra a cabine de atendimento e este ato é filmado, resultando na demissão de seu emprego.
Após uma vingança dramática e explosiva, o engenheiro fica famoso no país inteiro, sendo chamado de “Bombita”. E é a partir daí que o mesmo começa a ter o respeito e admiração de todos novamente. A crítica que fica é que uma pessoa só teve respeito e admiração após um ato de barbárie e consequente fama.

  • La propuesta

O quinto episódio traz como tema o poder que o dinheiro tem na sociedade atual. Um milionário faz de tudo para que seu filho, que atropelou uma grávida, não vá para a cadeia, subornando e extorquindo a todos a sua volta. O dilema entre a atitude correta e o instinto de proteger seu próprio filho custe o que custar é interessante. Será que nós, se tivéssemos o dinheiro do personagem, faríamos a mesma coisa?
Importante ressaltar também a ganância de todos os personagens deste segmento, indo do promotor de justiça ao jardineiro. E este último acabou pagando com a vida pelo seu interesse.

  • Hasta que la muerte nos separe

O último e mais longo episódio é o melhor. Uma noiva descobre a traição de seu marido em pleno casamento, e que a amante foi convidada para cerimônia!
O instinto inicial é fugir da festa e cair em prantos, seguido pela relação sexual com o cozinheiro da festa. Após isso, a noiva (Érica Rivas) torna a festa um verdadeiro alvoroço, agredindo a amante do marido e afirmando que nunca se separará dele, que isso é a pior vingança que ela poderia ter. Os convidados ficam constrangidos e apavorados com a situação, que é potencializada com o noivo bêbado com uma faca na mão e as agressões entre a noiva e a sogra. Por fim, quando os noivos enxergam quem realmente são, descobrem o amor então inexistente e dão as mãos, terminando o filme.
Este último capítulo, instigante e complexo, fecha com chave de ouro o filme. O.casal, destinado a uma relação fracassada, representa algo comum na sociedade atual, onde o matrimônio só existe por simples convenção social. Eles realmente se conhecem e se enxergam na cerimônia, e após os sucessivos episódios de selvageria, se reconhecem como iguais e encontram o verdadeiro amor. Mas que final cínico!

Sem nenhum pudor pode se alçar Relatos Selvagens a um posto similar àquele ocupado por obras como Ilíada, Macbeth e o Nascimento da Tragédia de Nietzsche, por exemplo, onde a fúria e os instintos mais primitivos humanos afloram revelando - parafraseando Hobbes - o lobo em nosso interior.
Relatos Selvagens .é um filme espetacular!

NOTA: 10.

Estudante de Geologia que tem o cinema como paixão e hobby desde pequeno. Entre todas as incertezas da vida, a sétima arte é um porto seguro e um meio de escapismo e reflexão. Tem um lugar especial no coração para filmes de terror e drama, mas gosta de todos os gêneros de filme, desde que cumpram o que propõem e não sejam dirigidos pelo Michael Bay.

Matheus Fontana

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